quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A Trilha da Música

Ele voltava para a casa com a cabeça cheia de pensamentos avulsos, não conseguia se concentrar em apenas uma coisa, mas pensava principalmente sobre o futuro, e ficava fantasiando com uma vida totalmente oposta a atual. Enquanto caminhava pela noite, rumo à sua casa, passava pelas paisagens e lugares familiares, tudo sempre igual, mudando levemente de acordo com o passar dos anos. Algumas ruas antes de seu destino, passou por uma loja que estava em reforma, na entrada tinham duas pessoas quebrando o chão com martelos e ferramentas do tipo, e o som do chão quebrando formava um ritmo musical, até dançante, que se alternava em várias combinações. Aquilo serviu para distrair sua atenção dos outros pensamentos que transitavam em sua mente. Esse som predominava a aparente quietude da noite, mas aos poucos se misturava com sons de pássaros, carros ao longe, e sons que vinham de dentro das casas da vizinhança.
Enfim, e infelizmente, chegara ao lar, silêncio, todas as luzes apagadas, cruzou o portão, tirou a chave do bolso e abriu a porta da sala. Foi direto para seu quarto, deitou-se na cama e ligou a televisão. Foi questão de minutos até que começasse a ouvir as discussões.
Começaram no quarto ao lado, e em seguida atravessou o corredor e se estendeu para a cozinha. O motivo era o amontoado de problemas da vida de um casal, mas surgiam frases e afirmações tão irracionais que ele só fazia aumentar o volume e tentar ficar com a atenção o mais distante possível do que acontecia cômodos à frente.
Fazia tempo que não sentia um lar embaixo daquele teto, nada que o prendesse entre aquelas paredes, e se perguntava constantemente o que fazia lá, o que o impedia de desaparecer completamente e começar a tentar viver por contra própria, julgava ter idade e responsabilidade suficiente para tal ato, pensava na liberdade e na possibilidade de achar um novo lar em algum outro lugar, um lugar em que o sentido da palavra não tivesse sido desgastado e esquecido. Ao contrário disso, sua casa começara a lhe perturbar, jurava ouvir vozes, ver fantasmas, sombras, uma paranoia sem fim.
Acendeu um cigarro e começou a reparar no seu quarto, nas suas coisas, como até elas expressavam desânimo, e a cada tragada que dava, vislumbrava imagens na fumaça, as mesmas imagens que pensara enquanto andava na rua, o lugar mais confortável que ele conhecia no momento.
E a discussão continuava, a mãe sempre gritando, o pai sempre falando com um tom sarcástico e inalterável, e o choro, e a falta de nexo.
Não conseguiu cair no sono, tamanha a impaciência de ficar naquele ambiente, e decidiu que aquele dia seria o último dia em que teria que tolerar tal situação.
Demorou mais alguns minutos até que a discussão enfim cessasse, e quando nada mais ouviu, soube que era a hora de tomar o passo seguinte, de confiar em toda a sua pouca experiência de vida e encarar o destino. Pegou uma mochila e uma mala, e as encheu com tudo que achava essencial.
Quando nada mais cabia e a bagagem estava feita, colocou uma alça da mochila no ombro direito e segurou a alça da mala. Respirou fundo, e foi andando pelo corredor o mais silenciosamente possível.
Ao chegar na sala de estar, deu uma última olhada para os porta-retratos, e todas as fotos de família que antes eram felizes, de repente pareceram ter mudado suas expressões, e encaravam-no como se ele fosse um desertor ingrato. Isso o abalou um pouco, mas não fez com que se sentisse menos alheio.
Ao trancar a última porta, deixou a chave embaixo do tapete, atravessou o portão e sentiu o frio da madrugada penetrar-lhe o rosto, em alguns minutos amenheceria, e seria um novo dia, de uma nova vida.
Dois passos que deu, começou a ouvir toda a orquestra da rua novamente, os carros, os cães, os pássaros, e continuou a jornada, tentando não olhar para trás, em vão, pois quando chegou no topo de sua rua, antes de virar a esquina, deu uma última olhada no que agora era um passado que nunca iria esquecer, e que nem sabia se ia de fato abandonar para sempre, talvez alguns anos, quando fosse bem-sucedido, quem sabe não voltaria, quem sabe não seria tarde demais, mas enquanto isso não ocorresse, ia buscar sua vida em outro lugar. Olhou para frente e seguiu andando, quase dançando, seguindo o trilho da música, prestando atenção a cada ritmo novo que ouvia, congestionando a mente com os mais diversos pensamentos.

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